Vivemos numa sociedade em que algumas das “narrativas” têm merecido muito mais atenção do que os próprios fatos em si. Experimentamos uma realidade social líquida, acelerada e em permanente mutação — um campo fértil para a criações de “narrativas”, que invariavelmente são utilizadas nos debates públicos. Quando descoladas da realidade, as “narrativas” ganham força de estratégia, sobretudo no ambiente das plataformas digitais, onde tudo é efêmero.
Um projeto de lei (PL), por exemplo, pode ter contra si uma certa “narrativa”, ainda que totalmente fictícia, positiva ou negativa, mas que rapidamente é impulsionada pelas redes sociais. É o caso do Projeto Lei 10.887, que pretende alterar a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92, aqui LIA), e que sofre com a criação da seguinte “narrativa”: o texto supostamente “flexibiliza os meios de controle” e “favorece a prática da corrupção”, uma vez que está sendo apoiado por determinados grupos de políticos. Apressadamente, sem amparo em qualquer dado científico e sem verificação de autenticidade, surgem hordas de “reprovação” ou de “apoio” — com rápida polarização do debate, com manifestações de emergência, mais das vezes sem qualquer análise acurada.
O fenômeno é decorrência da “sociedade do espetáculo” (“La société du spectacle”, Guy Debord), e o Direito não está alheio a essa manifestação. A espetacularização da ciência jurídica é um problema especialmente grave nas áreas mais vocacionadas à aplicação de sanções estatais, como é o caso do Direito Penal e do Direito Administrativo sancionador, que tentam resistir ao entusiasmante do atual populismo punitivo.
É nesse contexto social que avança no Parlamento a tramitação do projeto de lei que pretende alterar a LIA. A plateia sedenta por espetáculos, capitaneada por parte da mídia e por formadores de opinião (formar opinião própria é algo importante e raro numa sociedade em que muitos parecem preferir o aproveitamento de opiniões alheias), não demorou a tratar o PL 10.887 como um “grave risco” de “flexibilização da Lei de Improbidade” ou do “afrouxamento do combate à corrução”.
É muito difícil “combater” tal “narrativa”. É, em verdade, angustiante. Metaforicamente, é como trabalhar contra uma perspectiva ilusória — dialogar com opiniões que não têm qualquer densidade teórica, algumas meramente emotivas — tendo-se como ferramenta a “realidade”. O fato é que não há uma mensuração específica do grau de rigor de uma determinada legislação voltada ao controle das práticas de corrupção. Há um sistema normativo que deve tutelar determinados valores, de forma racional e com segurança jurídica. Aliás, é velha a constatação de que o simples aumento do rigor punitivo não é causa objetiva de redução de ilícitos penais ou administrativos — não é, pois, uma razão aritmética.
“O direito não é um filho do céu, é simplesmente um fenômeno histórico, um produto cultural da humanidade” (“Estudos de Direito I”, Tobias Barreto). Para além de fruto da cultura, o Direito é técnica e, como toda técnica, depende de múltiplos fatores, especialmente de matriz interpretativa, para ser mais ou menos efetivo aos seus propósitos de controle social.
Por isso, propõe-se aqui um nado contra a maré de críticas que foram endereçadas contra o PL 10.887, colocando em relevo apenas duas importantes novidades que, em nosso sentir, são bastante positivas, pois racionalizam a LIA.
A primeira proposta consiste na supressão da inusitada figura da “improbidade administrativa culposa”, ainda prevista no artigo 10 da LIA para casos de lesão ao erário. Em jeito de síntese, improbidade é desonestidade, um conceito refratário ao significado jurídico de “culpa”. Ontologicamente, não há desonestidade que não seja voluntária e intencional. Daí porque há de se comemorar a supressão da expressão que pretende excluir a culpa como modalidade de imputação subjetiva de um ato de improbidade administrativa. É um avanço, portanto, que o ato de improbidade, diferentemente do fato penal, caracterize-se apenas com dolo — e, mais, que tenha as mesmas exigências do dolo de natureza penal.
A segunda proposta de alteração, que em nosso juízo também aprimora o sistema de controle de práticas de corrupção, consiste na delimitação do tipo de ato de improbidade administrativa que importa violação aos “princípios” da Administração Pública, disciplinado no artigo 11 da LIA. É bem verdade que a proposta de supressão, como chegou a constar numa das versões apresentadas durante a tramitação legislativa, não seria adequada, eis que eliminaria a possibilidade de tipificação de atos de improbidade administrativa nos casos em que estão ausentes aspectos patrimoniais, como o enriquecimento ilícito e a lesão ao erário. Contudo, é extremamente positiva a alteração da LIA, fundamentalmente para que o figurino legal de improbidade administrativa que viola os “princípios” da Administração Pública seja melhor delimitado, diminuindo a vagueza do texto.
Essas duas propostas, tratadas com a brevidade que o espaço aqui permite, servem para apontar objetivamente que as alterações da LIA são absolutamente necessárias. A lei é imperfeita, é fruto de um momento histórico e, pela experiência, mostra-se abusiva em alguns pontos — é importante racionalizar o sistema anticorrupção, do qual a LIA é integrante. Não se trata, pois, de “narrativa”, de uma tentativa de má aplicação do Direito por pessoas inescrupulosas, como tentam impor ao debate. Não é essa a mensagem que deve ser passada à sociedade. Ao apoiar alguns dos aspectos do PL 10.887, não se está a referendar a corrupção — jamais. Há virtudes no PL em curso, como as duas aqui destacadas, uma vez que se prestam à clara melhoria do sistema de controle da corrupção no país. É sempre bom lembrar que há vida inteligente — e muita! — entre os extremos (virtus in medium est).
Matéria publicada originalmente no site Conjur e replicada neste canal.