Em artigo publicado na revista ‘CartaCapital’, Tereza Campello, Paulo Jannuzzi e Sandra Brandão detalham impacto da reorientação das políticas econômica e social brasileiras nos últimos sete anos
Você conhece alguém que prosperou depois de 2015? Se conhece, saiba que é uma raridade. Porque andar pelas ruas, fazer compras, conversar com colegas no trabalho ou participar de encontros familiares nos mostra, a cada dia, que as condições de vida dos brasileiros pioraram, e muito. Em junho, esta percepção foi traduzida em números pela divulgação de várias pesquisas sobre renda das famílias e segurança alimentar.
O IBGE mostrou que a renda domiciliar per capita atingiu, em 2021, o menor valor da série da Pnad Contínua e que os 50% mais pobres da população precisam tentar viver com apenas 13,83 reais por pessoa a cada dia. O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, elaborado pela Rede Penssan, mostrou que a insegurança alimentar atinge, em algum grau, a maioria da população (58,7%), sendo que 33 milhões de brasileiros passam fome. Ao todo, chega a 65 milhões os que não comem o suficiente por dia, o que equivale a uma França inteira em insegurança alimentar grave ou moderada.
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Este retrato cruel é resultado da reorientação das políticas econômica e social brasileiras nos últimos sete anos. Esta relação fica explícita ao analisar a evolução do rendimento domiciliar per capita nos últimos 20 anos, dividida em dois períodos: os governos do PT e o período Temer-Bolsonaro. Entre 2002 e 2015, a renda per capita média das famílias cresceu 38%. Mais importante, a renda aumentou sem exceção, para todos os segmentos, mais fortemente para aqueles na base da estrutura de renda, com os 80% “menos ricos” obtendo aumento real de renda acima da média nacional. O contrário ocorreu entre 2015 e 2021, quando a renda média decresceu 7%, queda que se reproduziu para todos os segmentos de renda, também sem exceção, mas mais intensamente para os de menor renda.
Expressos de forma gráfica, estes dados impressionam muito. Passamos de um Brasil em que a renda crescia para todos e a desigualdade diminuía, para um Brasil em que todos empobreceram e as desigualdades dispararam. Até mesmo os setores médios da sociedade foram atingidos de forma inclemente pela inflexão promovida pelo projeto liderado por Temer e continuado por Bolsonaro intitulado “Ponte para o Futuro”.
Ao evidenciar o que aconteceu com cada segmento de renda cai por terra a narrativa, sem base em evidências, de que os governos de Lula e Dilma beneficiaram apenas os pobres. Setores médios tiveram expressivo aumento de renda, e se beneficiaram também com empregos de qualidade, acesso à universidade, a viagens, a bens e serviços entre tantos avanços. Baseado nas mesmas evidências, estes segmentos perderam renda a partir de 2016 e qualidade de vida. Passaram a viver em um ambiente de forte incerteza, em que o endividamento e a imprevisibilidade de renda vêm fragilizando crescentemente sua capacidade de manter seu padrão de consumo, inclusive alimentar.
Mais pobre, mais desigual e mais inseguro quanto ao acesso à alimentação – este é o Brasil (des)construído a partir do golpe de 2016. Desfechos que resultaram de um conjunto de fatores: 1) a reforma trabalhista, que retirou direitos, aumentou a instabilidade de renda e não ampliou as oportunidades de trabalho (os trabalhadores informais sofrem três vezes mais de fome que os com carteira assinada); 2) o fim da política de valorização do salário mínimo, com impacto direto e imediato na vida de dezenas de milhões de trabalhadores, aposentados e pensionistas; 3) a inflação descontrolada de alimentos, com redução extrema do poder de compra da população; 4) o abandono das políticas de soberania e segurança alimentar, em especial as voltadas aos agricultores familiares; 5) a política irresponsável de preços dos combustíveis, atrelada a preços internacionais, com impacto do gás de cozinha, transportes e em toda cadeia produtiva; e 6) a fragilização do sistema de proteção social.
Inegável que a pandemia também teve seu papel neste processo, mas a profundidade da desorganização causada por ela deve-se às escolhas de um governo que atuou todo o tempo contra a vida, uma vez que a maioria dos países, mesmo tendo passado por crise similar, conseguiu superá-la mais rápido e com menos danos às condições de vida de seus povos. Como alertou Marcelo Neri, “a piora da insegurança alimentar no Brasil durante a pandemia foi quatro vezes maior que a média dos 120 países pesquisados”.
Combater a fome e enfrentar novamente a pobreza são tarefas civilizatórias, que o Brasil precisa reassumir. Mas fundamentalmente precisamos resgatar a perspectiva de um projeto de desenvolvimento com inclusão, um modelo onde a melhoria da renda da população ocorra pari passu com a retomada dos investimentos públicos e privados, aliada e motor da retomada de um crescimento mais equânime e sustentável.
Insistir nesse modelo injusto desperdiça nosso imenso potencial interno, aprofunda desigualdades e gera instabilidade política. Avançar nessa “ponte” nos conduzirá de volta ao passado e ao risco de ser um país onde metade da população não come e a outra metade não dorme, com medo da que não come, como alertou Josué de Castro há mais de 50 anos.
Tereza Campello é economista, titular da Cátedra Josué de Castro da USP e foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome de 2011 a 2016
Paulo Jannuzzi é professor universitário e foi secretário de Avaliação e Gestão da Informação da pasta nesse mesmo período
Sandra Brandão é economista e mestre em Economia pela Unicamp
Publicado originalmente em CartaCapital