O presidente Jair Bolsonaro conseguiu elevar o patrimonialismo, tão presente na história das relações de poder no Estado brasileiro, a outro patamar. Finalmente, agora o Palácio do Planalto terá um aparelho de espionagem aos moldes do que o próprio Bolsonaro havia anunciado que mantinha em caráter privado durante a infame reunião ministerial de 22 de abril. Naquela ocasião, o presidente alegou que não poderia ser “surpreendido com notícias” e que o seu “sistema particular de informação” funcionava melhor que os canais oficiais do governo. Foi também nessa reunião ministerial que Bolsonaro ameaçou “interferir em todos os ministérios” para ter acesso a relatórios periódicos da Polícia Federal (PF), das Forças Armadas e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Agora, sabe-se que o Palácio do Planalto criou na Abin o Centro de Inteligência Nacional (CIN), à imagem e semelhança do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), a política política da ditadura militar, criada pelo General Golbery do Couto e Silva após o Golpe de 1964. O “Serviço”, como era conhecido entre os fardados, foi instituído três meses após o golpe civil-militar de 31 de Março de 1964, e centralizou as operações do aparato de espionagem e repressão da ditadura, responsável pela cassação, exílio, perseguição, prisão e morte de milhares de homens e mulheres, alguns desaparecidos até hoje.
O Decreto 10.445, assinado por Bolsonaro e pelo General Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, ao qual a Abin é subordinada, foi publicado sem alarde no ‘Diário Oficial da União’ da última sexta-feira, 30 de julho. O ato substituiu a estrutura em vigor desde novembro de 2016, quando o então presidente Michel Temer promoveu uma reestruturação no órgão.
As medidas previstas no decreto já entram em vigor no próximo dia 17 de agosto. A partir dessa data, o diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, terá até 30 dias para publicar a relação de titulares dos cargos comissionados da nova estrutura. Após dispensar Sergio Moro do Ministério da Justiça e colocar no lugar André Mendonça, Bolsonaro chegou a nomear Ramagem para comandar a PF, mas o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), impediu a posse do delegado de polícia.
Segurança privada
Para a PF acabou indo Rolando Alexandre de Souza, colega de Ramagem na Abin que, por sua vez, comandou a segurança do então candidato Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, quando se aproximou dos filhos do atual presidente, o deputado Eduardo, o senador Flávio e o vereador Carlos, conhecidos como Zero Três, Zero Um e Zero Dois. Investigados por denúncias de corrupção e espionagem, os três filhos de Bolsonaro são os maiores fiadores de Ramagem no governo e bancaram a indicação do amigo dele para a PF.
Ramagem permaneceu à frente do órgão de inteligência, e agora poderá retribuir a gentileza do chefe nomeando as “pessoas certas” para os cargos. Segundo a Secretaria-Geral da Presidência, responsável pela edição do decreto presidencial, o texto aumenta o número de cargos em comissão na Abin de 207 para 221. Foram reservadas 17 vagas para os futuros arapongas do CIN, que não precisarão fazer concurso público para serem nomeados.
Pelo decreto, a Escola de Inteligência passará a cuidar da “capacitação em inteligência e em competências transversais e complementares” tanto para “agentes públicos em exercício na Abin”, como para “os indicados pelo Sistema Brasileiro de Inteligência ou por entidades ou órgãos parceiros da Abin”. O texto indica que o treinamento poderá ser oferecido a funcionários não-concursados.
Entre outras atribuições, os 17 do CIN deverão planejar e executar atividades de inteligência destinadas “ao enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade”, e implementar a “produção de inteligência corrente e a coleta estruturada de dados”.
Também caberá aos homens do presidente planejar e executar atividades para assessorar os órgãos competentes relacionados a políticas de segurança pública e à identificação de ameaças decorrentes de atividades criminosas, além de realizar pesquisas de segurança para credenciamento e análise de integridade corporativa.
Caça às bruxas e perseguição
O decreto do governo foi publicado em meio à turbulência causada pela revelação de que o Ministério da Justiça deu início a uma caça às bruxas sigilosa, criando um dossiê com quase 600 nomes de servidores federais e estaduais identificados como integrantes do “movimento antifascismo”. Na segunda-feira, 3 de agosto, a pasta comandada por André Mendonça informou em nota que decidiu substituir a “chefia da Diretoria de Inteligência” da Secretaria de Operações Integradas (Seopi), a unidade que produziu o dossiê.
Segundo a assessoria do ministério, o diretor de inteligência será substituído por Gilson Libório Mendes, coronel da reserva que tem formação militar na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Exército.
O ministro foi convocado a dar explicações no Congresso Nacional. A pasta afirmou que Mendonça está à disposição para prestar esclarecimentos à Comissão Mista de Investigação da Atividade de Inteligência, aguardando apenas a definição da data.
Nesta terça (4), a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, deu prazo de 48 horas para que o Ministério da Justiça se manifeste sobre o dossiê. O Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul também abriu, em 27 de julho, uma “Noticia de Fato” para que em dez dias Mendonça apresente esclarecimentos sobre o episódio.
Até o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou em entrevista ao programa ‘Roda Viva’ que a situação do ministro piora a cada dia. “Eu acho que seria bom se ele pudesse encerrar esse assunto de forma mais contundente do que a forma como ele reagiu até agora”, disse Maia. “Do jeito que as coisas estão caminhando, eu acho que a situação do ministro vem piorando ao longo dos últimos dias”.
O dossiê foi elaborado em 5 de junho deste ano, depois que foi divulgado o manifesto “Policiais antifascismo em defesa da democracia popular”, assinado por 503 servidores da área da segurança pública. Além dos policiais, a ação teve como alvo três professores universitários, um dos quais é Paulo Sérgio Pinheiro, ex-secretário nacional de Direitos Humanos e atual relator da ONU sobre Direitos Humanos na Síria. Todos são críticos do governo de Jair Bolsonaro.
O Ministério da Justiça produziu o levantamento com nomes e, em alguns casos, utilizou fotografias e endereços de redes sociais das pessoas monitoradas. Os documentos colhidos foram enviados a vários órgãos públicos, como Polícia Federal, Centro de Inteligência do Exército, Polícia Rodoviária Federal, Casa Civil e Agência Brasileira de Inteligência.
Criada por Sérgio Moro, a Seopi é uma das cinco secretarias do Ministério da Justiça. Quando Mendonça assumiu, solicitou investigação completa sobre movimentos que poderiam colocar em risco a ‘estabilidade política’ do governo. A secretaria é dirigida por um delegado da Polícia Civil do Distrito Federal e uma Diretoria de Inteligência chefiada por um servidor com formação militar. Ambos foram nomeados em maio por Mendonça.
Bancada do PT exige explicações
Um dos 579 alvos do dossiê da Seopi, o antropólogo Luiz Eduardo Soares disse ao jornal ‘ El País’ que, com ações do tipo, Bolsonaro “recria” um dos braços da polícia política brasileira durante a ditadura militar. “A recriação do velho SNI deixou de ser o sonho de Bolsonaro para se tornar o pesadelo da sociedade brasileira”, afirmou.
“A investigação clandestina contra cidadãos contrários ao fascismo é apenas mais um elo na corrente que nos arrasta para o abismo”, diz Soares, para quem as ameaças à democracia têm sido cometidas pelo Governo Bolsonaro rotineiramente. “A infiltração do fascismo se dá por toda parte, corroendo os pilares da democracia”.
Soares foi secretário nacional de Segurança Pública no início do Governo Lula. Além dele, também foram monitorados os professores universitários Paulo Sérgio Pinheiro (relator da ONU e ex-secretário Nacional de Direitos Humanos), Ricardo Balestreri (secretário de Segurança Pública no Pará) e Alex Agra Ramos, que leciona na Bahia.
O Movimento Policiais Antifascismo divulgou nota em que também acusou Bolsonaro de promover ações similares às utilizadas para perseguição política na ditadura militar e cobrou investigação e responsabilização dos envolvidos na criação do documento.
O grupo afirmou que o Ministério da Justiça viola princípios de legalidade e da imparcialidade ao elaborar o dossiê e tenta construir uma versão de que, supostamente, estaria ‘combatendo inimigos internos’. “Prática idêntica à da ditadura militar”, afirmou
A bancada do PT na Câmara, em peça subscrita pelo deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP), que é membro da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), protocolou seis medidas simultâneas contra o dossiê. A intenção é ouvir não só Mendonça, tanto na CCAI quanto no plenário, mas também o ministro Augusto Heleno.
Zarattini também fez dois pedidos de acesso a informação. “Por que a Seopi mobilizou recursos humanos e materiais para investigar, em caráter sigiloso e mascarado de atividade de inteligência, servidores públicos e professores universitários que se manifestam legítima e democraticamente?”, questionou o deputado.
Para Zarattini, “o relatório da Seopi indica a utilização do aparelho do Estado para o monitoramento e constrangimento de legítimos e democráticos opositores ao governo Bolsonaro, incorrendo em flagrante desvio de finalidade de órgãos públicos e risco de violação de direitos e garantias individuais dos cidadãos monitorados”.
Decreto para sustar artigos
Em uma sexta iniciativa, a bancada protocolou um Pedido de Decreto Legislativo (PDL) com o objetivo de sustar a validade de dois artigos do Decreto 9.662, assinado por Bolsonaro em 1º de janeiro de 2019, que estabeleceram as atribuições da Seopi. No decreto, Bolsonaro deu poder à Seopi de “estimular e induzir a investigação de infrações penais, de maneira integrada e uniforme com as polícias federal e civis”.
Segundo estudo da assessoria técnica da liderança do PT, os artigos “exorbitam flagrantemente do poder regulamentar ao adentrarem competências que lhes são alheias e criarem legislação paralela àquela específica e vigente a regulamentar as atividades de inteligência no Brasil”.
Em cinco de junho, Zarattini apresentou requerimento na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News solicitando a convocação do deputado estadual Douglas Garcia (PSL-SP) para prestar depoimento sobre o seu envolvimento com propagação de notícias falsas e a criação e divulgação de dossiê com informações pessoais de mais de mil integrantes de movimentos sociais democráticos e antifascistas.
O pedido, também assinado pelos deputados Rui Falcão (PT-SP) e Natália Bonavides (PT-RN), visa intensificar as investigações sobre a rede bolsonarista de propagação de notícias falsas utilizando recursos públicos. “É preciso que essa investigação seja feita de forma rigorosa para garantir que a democracia no Brasil prevaleça”, argumenta Falcão.
Defensor do governo Bolsonaro, Garcia tem incentivado os seguidores a atacarem os integrantes do movimento antifascista que fazem oposição ao presidente. Segundo ele, os antifascistas são criminosos porque participam de organização criminosa, terroristas.
Para Zarattini, as declarações são uma tentativa de intimidar os movimentos sociais. “É de extrema importância que essa tentativa de intimidação seja punida e com rigor. Essa perseguição política promovida por bolsonaristas é digna dos tempos obscuros da ditadura”, lamentou.
Garcia está sendo investigado pelo STF, e o Ministério Público de São Paulo abriu investigação por uso de instalações e equipamentos públicos de seu gabinete na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) para a propagação de notícias falsas.
Matéria publicada no site Canal da Resistência e replicada neste canal.
Foto 1: Pedro Ladeira
Foto 2: Gustavo Bezerra