Quanto mais se investiga sobre os responsáveis pelo atentado contra a democracia de 8 de janeiro, mais o nome do jurista Ives Gandra Martins ganha destaque.
A ponto de hoje ser possível afirmar, sem dúvida alguma, que ele foi o mentor teórico do golpe, a pessoa que usou sua reputação para distorcer a lei e disseminar uma ideia absolutamente falsa: a de que a Constituição preveria a possibilidade de as Forças Armadas serem instrumento de um golpe.
Notório defensor de pautas conservadoras, professor de direito e nome frequente nas páginas de opinião dos jornais, o jurista forma generais na Escola do Comando e Estado Maior do Exército há 33 anos. Na instituição, é professor emérito de Direito Constitucional.
Essa posição o tornou uma espécie de guru do bolsonarismo. E sua popularidade entre os apoiadores de Jair Bolsonaro cresceu muito após ele apoiar o impeachment fraudulento contra Dilma Rousseff e a prisão injusta de Lula.
Interpretação distorcida da Constituição
Sua contribuição para a tentativa de golpe em 8 de janeiro se deu por meio de críticas constantes ao que chama de “ativismo judicial” do STF e, especialmente, pela tese de que o artigo 142 da Constituição daria aos militares a competência para atuar como um “poder moderador” em caso de “crise entre os Três Poderes”.
Essa interpretação, apresentada em artigos e entrevistas desde pelo menos 2016, foi amplamente criticada por outros especialistas em direito, mas continuou sendo usada pelo bolsonarismo para defender um novo golpe militar no Brasil. E se tornou fundamental para que a massa de golpistas acreditasse ser possível dar atacar a democracia sem desrespeitar a Constituição.
Mesmo com os vários alertas e críticas feitos por outros especialistas em direito, Gandra Martins manteve sua posição, claramente estimulando o golpe. Não mudou de ideia, por exemplo, quando Jair Bolsonaro, em maio de 2020, usou uma das lives do jurista para sugerir no Twitter que poderia convocar as Forças Armadas contra a “politização do STF”.
Mais de dois anos depois, mantinha sua posição golpista. Tanto que, em 30 de novembro de 2022, participou da audiência pública no Senado que serviu de estopim para a série de atos golpistas e violentos que marcaram o dezembro de Brasília e escalaram até o 8 de Janeiro.
A audiência reuniu bolsonaristas que iam de parlamentares hoje investigados por atiçar o 8 de janeiro a golpistas explícitos, como o cacique Tserere, que liderou protestos contra as eleições e o STF, e George Washington de Oliveira Sousa, hoje um dos condenados pela tentativa de explodir o aeroporto de Brasília. Dando verniz constitucional a tudo que se tramava, lá estava Gandra Martins.
O celular de Mauro Cid
Agora, com a divulgação dos planos golpistas armazenados no celular do tenente-coronel Mauro Cid, ex-faz-tudo de Bolsonaro, o nome de Ives Gandra Martins se junta à tentativa de golpe de forma definitiva. O documento que descrevia passo a passo como a democracia seria mais uma vez derrubada no país tinha um título claramente inspirado nas ideias do jurista: “Forças Armadas como Poder Moderador”.
Além disso, o telefone de Cid guardava considerações de Gandra Martins sobre as situações em que o governo poderia decretar Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e um questionário, respondido pelo jurista ao major Fabiano da Silva Carvalho, no qual ele defende o golpe militar de 1964 como uma “imposição popular” e afirma, com todas as letras, que o artigo 142 poderia ser invocado em caso de “crise entre poderes”.
Após as revelações, Gandra Martins utilizou toda sua habilidade linguística para se defender. “A minha interpretação do 142 sempre foi extremamente deturpada. Se outros interpretaram incorretamente o que eu disse e escrevi, o que eu posso fazer?”, disse ao jornal O Estado de S. Paulo.
Bom, sabemos o que ele não fez: evitar que suas ideias estimulassem os anseios antidemocráticos de Jair Bolsonaro seus cúmplices e seus seguidores. Por isso, tem muito a explicar. Inclusive à CPMI do Golpe.