AP contra Lula sobre caças é cloaca do lavajatismo; Lewandowski resgata lei

O calvário judicial do ex-presidente Lula chega ao fim. Não promoveu baderna. Não ameaçou desrespeitar ordem judicial. Não saiu por aí a atacar o Judiciário, apesar das aberrações de que foi vítima. Acusado, optou por se defender.

5 mar 2022, 18:47 Tempo de leitura: 7 minutos, 41 segundos
AP contra Lula sobre caças é cloaca do lavajatismo; Lewandowski resgata lei

“No último processo de que Lula se livra, eis a expressão inequívoca do lavatismo — e, pois, da agressão ao devido processo legal”, afirma Reinaldo Azevedo em artigo no Uol.

Foto: Ricardo Stuckert

O calvário judicial do ex-presidente Lula chega ao fim. Não promoveu baderna. Não ameaçou desrespeitar ordem judicial. Não saiu por aí a atacar o Judiciário, apesar das aberrações de que foi vítima. Acusado, optou por se defender. O ex-presidente foi alvo de, atenção!, 17 investigações entre inquéritos e ações penais. Acrescentando-se um PIC (Procedimento Investigatório Criminal) do Ministério Público, somam-se 18 iniciativas. Sabem quantas restam agora? Nenhuma! Acabou! Ontem, o ministro Ricardo Lewandowski, do STF, suspendeu a tramitação de uma Ação Penal que acusava o ex-presidente de tráfico de influência, lavagem de dinheiro e organização criminosa na compra dos caças Gripen. O caso é a cloaca do lavajatismo.

Aí a extrema-direita achincalha: “Também, com o Supremo ajudando…” Não! A insinuação está errada de vários modos. Dos 18 casos de que Lula foi alvo, decisões do Supremo tiveram impacto em apenas seis. Nos demais, ou Lula foi absolvido ou a denúncia foi rejeitada — ou, ainda, o inquérito foi arquivado por falta do que investigar. Escrevi um post a respeito em 25 de junho do ano passado, quando ainda restavam três investigações contra o ex-presidente.

E é bom notar: mesmo nos casos em que pesou a decisão de um ministro do Supremo, como nesta quarta-feira, o tribunal nada mais fez do que cumprir a lei. Ninguém tem o direito de duvidar de que o petista foi, sim, alvo escancarado do chamado “lawfare”, que consiste no uso da lei por aparelhos do Estado para promover perseguição política.

De todos os casos que colheu Lula, sempre considerei este, o dos caças Gripen, o mais absurdo. Até porque acompanhei, por dever profissional, o esforço do governo brasileiro para comprar os aviões. Começou ainda no primeiro governo FHC. E foi se arrastando por falta de recursos. A compra só foi efetivada no governo Dilma. Ainda em seu segundo mandato, o petista chegou a expressar alguma simpatia pelo francês Rafale, mas era parte de sua política de aproximação — dentro das regras do jogo — com o governo da França. A cúpula da Aeronáutica sempre soube que coube à Força a decisão pela compra dos suecos Gripen. O resto não passou de uma fantasia bem-urdida por procuradores da República.

Expressão do terror jurídico

Quem se interessa pelo devido processo legal deve ler a exemplar decisão de Lewandowski. Confesso que causa um misto de repulsa e vergonha saber que, por mais de seis anos, o país viveu sob a égide do terror jurídico promovido pela Lava Jato. Sei o quanto me custou apontar, desde o começo, o que considerei instrumentalização política da Justiça. Se dúvida havia, eis aí Sergio Moro a rondar a vida pública na desavergonhada condição de candidato à Presidência da República. Não sem antes passar pelo Ministério de Jair Bolsonaro, depois de ter condenado sem provas aquele que não pôde concorrer com seu futuro chefe. Parece roteiro de filme ruim. Mas era apenas a realidade brasileira deformada pela mistificação.

A investigação contra Lula começou em 2016 no âmbito da Operação Zelotes, deflagrada em 2015 para apurar suposto tráfico de influência no CARF (Conselho de Administração de Recursos Fiscais), órgão do Ministério da Fazenda responsável por julgar os recursos administrativos de autuações contra empresas e pessoas físicas por sonegação fiscal e previdenciária. Figuram ainda como réus na ação Luís Cláudio Lula da Silva, filho do ex-presidente, e o casal Mauro Marcondes e Cristina Mautoni.

A acusação, formulada pelos procuradores Frederico de Carvalho Paiva e Herbert Reis Mesquita, do Distrito Federal, buscava associar a edição de uma Medida Provisória — que teria sido “comprada” — à aquisição dos caças, relação que nunca foi nem remotamente demonstrada.

Decisão de Lewandowski

A decisão de Lewandowski é exemplar.

O ministro começa lembrando que a tal Medida Provisória foi aprovada e convertida em lei pelas duas Casas do Congresso em 2015 e que os nove réus da Zelotes — QUE NEM SEQUER MENCIONAVA LULA — foram absolvidos pelo TRF-4 por falta de provas. O ministro transcreve um trecho do acórdão: “Não se vê nem se provou, ao final, no âmbito dos fatos envolvidos na suposta compra de Medida Provisória, qualquer delito como tal demonstrado”.

Lewandowski reproduz trecho de informação oficial da FAB, que relata assim a escolha do Grippen:

“Foi selecionado após análises de aspectos operacionais, técnicos, logísticos, de custos e de transferência de tecnologia” (…). O relatório elaborado pela COPAC teve 33 mil páginas e incluiu análises das indústrias, dos projetos e de uma equipe formada por pilotos, engenheiros, oficiais de logística e de outras especialidades”.

Nem Lula nem seu filho — ou os outros acusados — influenciaram a decisão dos militares.

Na liminar concedida pelo ministro fica patente a suspeição dos procuradores Frederico de Carvalho Paiva e Herbert Reis Mesquita, que, de resto, agiram de forma concertada com a Lava Jato de Curitiba — que nem tinha competência para atuar no caso.

Escreve o ministro:

De fato, mesmo num exame ainda perfunctório dos autos, salta à vista a ausência de suporte idôneo para deflagrar a ação criminal aqui atacada, porquanto, desde a sua fase embrionária, iniciada pelos integrantes da extinta ‘Lava Jato’, os participantes dos grupos de mensagens integrados por Procuradores da República, dentre eles — segundo sugerem os diálogos transcritos pela defesa — os mencionados Frederico de Carvalho Paiva e Herbert Reis Mesquita, identificados como ‘Fred’ e ‘Herbert’, jamais deixaram de reconhecer a fragilidade das imputações que pretendiam assacar contra o reclamante. A título de exemplo, ressalto uma passagem na qual o próprio Herbert admite que não havia ‘nada de anormal na escolha [dos caças]’,

Segue Lewandowski:

“Não obstante a opinião reiterada e unanimemente esposada pelos participantes desses grupos de mensagens no sentido da inconsistência dos elementos de convicção que estavam a engendrar, os integrantes da extinta “Lava Jato” resolveram dar continuidade às investigações — levadas a cabo, ressalte-se, ao arrepio do ‘princípio do promotor natural’, dada a flagrante a incompetência de seus condutores — as quais acabaram resultando na formulação da denúncia ora impugnada”,

O magistrado concedeu uma decisão em caráter liminar a uma Reclamação apresentada pela defesa de Lula. O Ação Penal contra o ex-presidente e as outras três pessoas tramita da 10ª Federal de Brasília. Leiam mais um trecho:

(…) É possível verificar, ainda, neste exame preliminar dos autos, que os integrantes da ‘Lava Jato’ de Curitiba não apenas idealizaram, desde os seus primórdios, a acusação contra o reclamante objeto da presente contestação — possivelmente movidos pelos mesmos interesses heterodoxos apurados em outras ações que tramitaram no Supremo Tribunal Federal — como também, pasme-se, revisaram a minuta da denúncia elaborada pelos Procuradores do Distrito Federal”

Atenção! Os diálogos que colaboram para embasar a decisão do ministro pertencem aos arquivos da Operação Spoofing, deflagrada pela Polícia Federal para chegar aos hackers que capturaram as conversas mantidas pelos procuradores. Esse material foi periciado pela própria PF.

Verdadeiros agentes estrangeiros

O troço é tão asqueroso que, num chat chamado “Nove Caças” — “nove” alude ao fato de Lula ter perdido um dedo, e “caças”, aos aviões –, um dos procuradores escreve como se fosse um agente de governo estrangeiro no país. Diz:

“Vou verificar a situação da SAAB Gripen nos Estados Unidos, mas, em princípio, não são emissoras de ações por lá. Então para ver o interesse americano, precisamos identificar alguma conta bancária ou transmissão de e-mail que tenha se valido do provedor americano (o que é fácil). Não sei se eles conseguem atuar só com base no fato de uma empresa americana ter sido prejudicada na concorrência”.

A ideia era tentar envolver o Departamento de Justiça dos EUA. Como lembra a defesa de Lula, “de acordo com o FCPA (Foreign Corrupt Practices Act), referidas agências norte-americanas podem aplicar punições criminais e cíveis, respectivamente, a pessoas e a empresas de outro país em determinadas situações que envolvam supostos elementos de conexão com os Estados Unidos”.

É espantoso!

Concluo.

No último processo de que Lula se livra, eis a expressão inequívoca do lavatismo — e, pois, da agressão ao devido processo legal. Essa gente nos empurrou para o buraco em que estamos. Em mais uma decisão exemplar, Lewandowski restaura o devido processo legal.

Reinaldo Azevedo.

Artigo originalmente publicado no portal Uol.

Publicado no site do PT e replicado neste canal.