“Além de [a fome] atingir um número muito maior de famílias, como nunca se tinha visto antes no Brasil, nós não contamos com a ajuda do governo federal”, denuncia o criador do Fome Zero e ex-diretor da FAO.
O Brasil atravessa um quadro de aguda crise econômica e miséria social, agravada pelo estrangulamento, imposto pelo desgoverno Bolsonaro, de políticas públicas voltadas para populações mais vulneráveis, como o Bolsa Família. O abandono do povo à própria sorte rapidamente gerou um aumento explosivo da pobreza, que se manifesta de modo mais perverso na volta da fome. Em 2014, durante o governo Dilma, o país havia finalmente deixado o Mapa da Fome das Nações Unidas. Hoje, o cenário é de um país destroçado: quase 20 milhões de brasileiros passam fome diariamente, enquanto mais da metade da população (55%) enfrenta algum tipo de insegurança alimentar. A situação preocupa o diretor do Instituto Fome Zero, José Graziano da Silva, um dos pais do famoso programa homônimo implementado no início do governo Lula, em 2003. Graziano compara o atual momento do Brasil ao de um país “em guerra”.
“Além de [a fome] atingir um número muito maior de famílias, como nunca se tinha visto antes no Brasil, nós não contamos com a ajuda do governo federal”, denunciou o diretor do instituto, em entrevista à agência alemã Deutsche Welle, na terça-feira (1º). “São poucos os municípios e Estados que têm no combate à fome a sua prioridade. Eu, particularmente, que estive por 15 anos na FAO, parece que estou vendo um país em guerra”, afirmou Graziano, referindo-se à agência das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura chefiada por ele entre 2012 e 2019.
Graziano chama a atenção para a contradição no fato de o país ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo. Ou seja, a fome, como apontou Josué de Castro, é um problema político, não de falta de alimentos. “A questão da fome hoje no país, e sempre, é uma questão de acesso”, explicou Graziano. “Não faltam alimentos. Falta dinheiro para a população comprar alimentos. Já era assim no tempo de Josué de Castro, há 75 anos, e agora está muito mais acentuado”.
Emprego e renda tiraram país do Mapa da Fome
O ex-diretor da FAO ressaltou ainda que o atual cenário de calamidade não pode ser atribuído apenas à pandemia do Covid-19. “A pandemia veio agravar o problema, mas não é sua causa original. Com mais concentração da renda, mais desemprego, menor crescimento, a situação só piorou e mais pessoas foram jogadas na miséria”.
Na sua avaliação, um conjunto de fatores contribuiu para o aumento expressivo da fome no Brasil. Baixo crescimento econômico, insuficiente para gerar renda, perda do poder de compra do trabalhador, afetada pela inflação, em especial dos alimentos, além do desmantelamento das políticas sociais e de segurança alimentar.
“O mais importante é geração de emprego e renda dentro de um processo de desenvolvimento econômico inclusivo, que distribua melhor a renda”, observou Graziano. “Isso que acaba com a fome. Políticas de transferência de renda são o que chamo de atores coadjuvantes das políticas macroeconômicas. A valorização do salário mínimo, na minha opinião, foi a grande política que tirou o país do Mapa da Fome nos governos Lula”.
Negligência do governo
Graziano criticou o que considera “negligência do governo federal” e advertiu que o quadro atual é dramático. Se nada for feito, insiste, “vamos chegar a uma situação explosiva no final do ano”. Para ele, “os municípios podem fazer muita coisa, restaurantes populares, feiras livres, apoio à agricultura familiar, hortas comunitárias… Os municípios têm os Conseas (Conselhos de Segurança Alimentar). Eles não foram extintos, como foi o Consea federal”.
O agrônomo afirmou que a crise só não é pior graças à atuação de setores da sociedade civil. “As organizações da sociedade civil estão fazendo o possível, muitas vezes o impossível. Nota-se claramente uma canseira, fadiga dos doadores. É muito difícil manter esse ritmo acelerado de arrecadação e distribuição de alimentos”, descreveu.
Impactos econômicos da fome
Graziano também afirmou que é importante considerar os impactos econômicos da não erradicação da fome. Ele citou estudos da Cepal, junto com o Programa Mundial de Alimentos, na América do Sul, que mostram perdas de 3,5% do PIB, em média, decorrentes da insegurança alimentar. Na América Central e República Dominicana, houve registro de perdas de até 11%.
“A fome afeta a produtividade das pessoas, com maior ocorrência de enfermidades, mortes, menor nível educacional decorrente de repetência ou ausência das crianças”, argumentou Graziano.
“Costumo dizer que a relação custo-benefício para erradicar a fome é de aproximadamente 1 para 10 na América Latina”, disse. “Quer dizer que a cada R$ 1 investido na erradicação da fome, teríamos o retorno de R$ 10. Portanto, não fossem por razões morais e humanitárias, também do ponto de vista econômico é um grande negócio erradicar a fome até 2030”, concluiu.
Da Redação, com DW
Publicado originalmente no site do PT e replicado neste canal.