POLÍTICA – Lei de Cotas: vigência, avaliação e revisão

O propósito deste artigo é apresentar de forma pontual o que está em jogo neste ano de 2022, ano crucial para continuidade e revisão da lei 12.711/2012, mais conhecida como Lei de Cotas no Ensino Superior.

11 fev 2022, 10:12 Tempo de leitura: 11 minutos, 25 segundos
POLÍTICA – Lei de Cotas: vigência, avaliação e revisão

O propósito deste artigo é apresentar de forma pontual o que está em jogo neste ano de 2022, ano crucial para continuidade e revisão da lei 12.711/2012, mais conhecida como Lei de Cotas no Ensino Superior. Essa lei foi uma conquista das lutas do movimento negro que, ao longo de um intenso debate, politizou e reeducou uma grande parcela da sociedade brasileira, da universidade e do Estado a compreenderem a urgência das ações afirmativas como uma forte medida de correção de desigualdades históricas. Essa politização também teve como resultado, a implementação de várias políticas afirmativas, dentre elas, a Lei em questão, nos governos do Partido dos Trabalhadores.

Apresentamos, também, a nossa leitura sobre a tramitação em regime de urgência de um dos PLs que incidem sobre a lei, o PL 3422/2021, que estabelece a sua prorrogação por 50 anos.

No atual debate sobre o PL 3422/2021 e tantos outros que tramitam no Congresso Nacional e têm como tema a Lei de Cotas, alguns termos e conceitos são usados para discuti-la, bem como o seu prazo de revisão previsto no artigo 7º. Alguns deles são: vigência, avaliação e revisão.

Por isso, apresentamos, aqui, a nossa interpretação sobre estes termos e conceitos à luz da nossa atuação na Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UFPR, que têm acompanhado, debatido com parlamentares, com algumas organizações do movimento negro e alicerçados em nossa própria vivência como docentes de universidades públicas federais que acompanham o debate institucional e convivem com as/estudantes cotistas e sua trajetória acadêmica de desafios e conquistas.

Vigência – Ao criar o programa de reservas de vagas para estudantes de escola públicas, pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiências, a lei 12.711/2012 não estabeleceu prazo para o término desta modalidade de ação afirmativa. Diferentemente do que ocorre com a Lei 12.990/2014, que instituiu as cotas raciais no serviço público federal com vigência de dez anos, quando exigirá nova legislação para a sua continuidade.

Avaliação – A responsabilidade dos órgãos públicos no monitoramento e avaliação da implementação da lei 12.711/2012 foi delimitada em seu artigo 6º, isto é, “(…) O Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, serão responsáveis pelo acompanhamento e avaliação do programa de que trata esta Lei, ouvida a Fundação Nacional do Índio (Funai) (…)”. Através da Portaria 803/2013, O MEC criou a Comissão Consultiva da Sociedade Civil sobre a Política de Reserva de Vagas nas Instituições Federais de Educação Superior com a finalidade de contribuir com o debate acerca do processo de implementação da Lei no 12.711, de 29 de agosto de 2012, e elaborar propostas de ações que promovam a concretização efetiva da reserva de vagas junto às instituições federais de educação superior. A Comissão Consultiva era composta por representantes de instituições públicas e entidades da sociedade civil, inclusive a Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as. Esta comissão, porém, teve vida curta sendo completamente esvaziada após 2016.

Atualmente, os órgãos públicos expressamente mencionados no artigo 6º da lei 12.711/2012 afirmam que cumpriram o caput da lei através dos seguintes instrumentos, SIMOPE e “Pesquisa de avaliação da política de cotas no serviço público e elaboração de metodologia para avaliação da lei de cotas raciais e sociais nas Universidades e Institutos Federais”, porém, essa ação foi realizada de forma desarticulada, sem discussão com a comunidade acadêmica, com os estudantes, com os movimentos sociais e com muitos limites. Não podemos nos esquecer de que estamos em tempos pós-Golpe de 2016, com um governo de extrema direita, eleito em 2018, o qual tem imposto tremendos retrocessos econômicos, políticos, sociais e educacionais em nosso país. As universidades têm sido atacadas, os movimentos sociais criminalizados e o atual governo extinguiu do Plano Plurianual (PPA) várias ações voltadas para os sujeitos das ações afirmativas. É nesse clima que a Lei 12.711/2012 tem sido tratada pelo atual governo federal, ou seja, sem acompanhamento e monitoramento eficazes.

Além disso, a atual Seppir perdeu centralidade, poder orçamentário e político e não se constitui mais como um ministério. E o Ministério de Educação atual possui uma política educacional errática que sequer defende o direito à educação e cujo ministro tem sido protagonista de comentários lamentáveis sobre sujeitos de coletivos diversos.

Vamos entender o que são, portanto, os instrumentos mencionados no artigo 6º da Lei de Cotas:

1) SIMOPE – Sistema de Monitoramento de Política Étnico-Raciais – plataforma criada em 2015, ainda no governo da Presidenta Dilma Roussef e descontinuada após 2016.

2) “Pesquisa de avaliação da política de cotas no serviço público e elaboração de metodologia para avaliação da lei de cotas raciais e sociais nas Universidades e Institutos Federais”, elaborada pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e associada ao Termo de Execução Descentralizada Nº 2/2019 firmado com a Secretária Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (SNPIR/MMFDH).

Em 2021, a ABPN e o NEAB/UFPR emitiram diferentes pareceres técnicos pelos quais atestavam a insuficiência do SIMOPE para o monitoramento e avaliação da lei 12.711/2012. Ainda em 2021, o Grupo de Trabalho de Políticas Étnico-Raciais da Defensoria Pública da União emitiu nota técnica nº 09 demonstrando o mesmo, isto é, os mecanismos relacionados pelos órgãos públicos não foram capazes de acompanhar o processo de implementação da lei 12.711/2012.

Portanto, não se pode dizer que houve, de fato, monitoramento e avaliação da Lei 12.711/2012 pelos órgãos responsáveis por realizá-los. Essa situação se torna um campo fértil para a distorção da ideia de revisão, presente na Lei, gera incompreensões e cria uma narrativa equivocada sobre um possível término desta em agosto de 2022, como tem sido apregoado por parte da mídia hegemônica e por vários setores da sociedade.

Revisão – O texto do artigo 7º da lei 12.711/2012 está escrito de forma imperativa estabelecendo que: “(…) o Poder Executivo promoverá, no prazo de 10 (dez) anos, a contar da publicação desta Lei, a revisão do programa especial para o acesso de estudantes pretos, pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, às instituições de educação superior. (…)”. Portanto, não há dúvida sobre o processo de revisão: se, por um lado, não existe prazo de término da Lei, por outro, a revisão do Programa Especial, em 2022, é um fato que se impõe para o bem do aprimoramento da política pública e não implica em finalização ou descontinuidade.

Este artigo sofreu mudança crucial em 2016, quando a lei 13.406/2016, ao incluir pessoas com deficiências dentre os beneficiários da Lei 12.711/2012, alterou o conteúdo do artigo 7º subtraindo a responsabilidade do Poder Executivo. A nova redação ficou assim: “(…) no prazo de dez anos a contar da data de publicação desta Lei, será promovida a revisão do programa especial para o acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas (…)”.

Em nossa interpretação, o artigo 7º é intrínseco ao artigo 6º, ou seja, a revisão ocorre mediante indicadores extraídos do processo de monitoramento e avaliação. Por isso, a revisão deve ser compreendida como uma oportunidade para aprimorar a política pública aperfeiçoando a democratização do acesso para estudantes de escolas públicas, pessoas negras, indígenas e de pessoas com deficiência e estabelecendo uma permanência digna, a qual inclui as questões curriculares, as bolsas de iniciação científica e extensão, a bolsa permanência e a renovação do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). Além disso, implica a construção de uma robusta política de assistência estudantil que atenda o novo perfil social e econômico das estudantes e dos estudantes das Instituições Públicas Federais do Ensino Superior, configurado por meio da adoção das cotas.

Mas aquilo que seria um processo de revisão visando o aprimoramento da Lei 12.711/2012 ganhou outros contornos, principalmente no Congresso Nacional, onde tramitam dezenas de projetos de lei que, aproveitando-se da brecha e da confusão gerada pela ideia de revisão, exposta pelo artigo 7º, incidem sobre a Lei das mais diversas maneiras. Alguns Projetos de Lei apresentam um teor racista e são bastante perigosos como aqueles que propõem a supressão das subcotas raciais no conjunto dos 50% de vagas reservadas para estudantes de escolas públicas.

Perante este cenário, o Projeto de Lei 3422/2021 pode vir a desempenhar um papel significativo. Não descartamos que ele deveria ser discutido com várias organizações do movimento negro, pesquisadores e pesquisadoras do tema, estudantes e egressos das cotas. Mas, gostaríamos de ponderar duas questões. Primeira: o PL 3422/2021 coloca em debate uma matéria que tem sido omitida pelo Governo Federal. Como estamos diante de um governo que é contrário às políticas de ações afirmativas e age de maneira ardilosa, seria ingênuo pensar que não há nenhuma orientação em curso para, sorrateiramente, retirar direitos garantidos pela Lei de Cotas por meio da ação dos parlamentares aliados do atual governo federal, no Congresso Nacional. Basta lembrar a declaração do Ministro da Educação durante audiência pública na Câmara dos Deputados realizada no dia 17/11/2021. Ao ser indagado sobre qual é a posição do MEC em relação a revisão da lei de cotas afirmou categoricamente “a cota pra mim tinha que ser social, e não racial”. Independentemente do PL 3422/2021, existem outros em tramitação, inclusive que se coadunam com a posição do defendida pelo atual Ministro da Educação.

Consideramos que o PL 3422/2021 necessita de mudanças em seu conteúdo, porém ponderamos que o texto apresentado pela deputada Benedita da Silva (PT/RJ), Valmir Assumpção (PT/BA) e Carlos Zarattini (PT/SP), ao ser aprovado para tramitação em regime de urgência, canaliza o debate no interior do parlamento obrigando todas as outras matérias sobre o mesmo assunto que tramitam na casa serem apensados a ele, como por exemplo o PL 5384/2020 que estabelece como definitivas as cotas raciais nas universidades e ensino médio – de autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS), Damião Feliciano (PDT-PB) e Benedita da Silva (PT-RJ) – e que já conta com requerimento para tramitar conjuntamente ao 3422/2021. Essa situação poderá resguardar o processo de revisão de eventuais iniciativas que partam do poder executivo e necessitem do aval do parlamento brasileiro. Para a relatoria deste PL, foi designado o deputado Bira do Pindaré (PSB-MA), que, também já apresentou projeto discutindo a matéria (PL 1788/2021). A expectativa é de que, na elaboração de seu relatório, o deputado relator estabeleça um diálogo amplo e profundo com as várias organizações do movimento negro, associações científicas, pesquisadoras e pesquisadores negros e não negros e estudantes. São setores interessados na continuidade da Lei de Cotas e no seu aprimoramento.

Uma Lei cuja eficácia tem sido atestada por uma série de pesquisas acadêmicas e pela vivência de todas e todos que participam da Universidade e dos Institutos Federais de Ensino Superior (IFES) não pode ser discutida com um único grupo, fechada em um gabinete e nem reduzida a sua autoria e relatoria. A sua aprovação dependerá não somente do clima político, mas também de um competente aprimoramento, pois esse é um tema importante para o Brasil democrático e não só para o Congresso Nacional.

Sabemos dos riscos em um momento de muita tensão e desgoverno. Mas, uma vez que o debate já está colocado, buscamos inspiração na articulação dos setores emancipatórios que sempre estiveram unidos nas lutas sociais mais urgentes. Como exemplo, citamos a exitosa luta pela aprovação do FUNDEB. Ela poderá nos servir de inspiração. Mesmo em quadro de correlações de forças bastante desfavorável no congresso nacional, entidades que atuam em defesa da educação pública travaram incansável batalha pela aprovação do novo FUNDEB, e lograram êxito. E o fizeram incluindo o combate às desigualdades raciais como um dos condicionantes para a distribuição dos recursos do fundo, fato inédito. Neste caso, a unidade na luta fez a lei!!!

Cleber Santos Vieira – Professor da Universidade Federal de São Paulo, presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as, integrante do NAPP de Igualdade Racial da Fundação Perseu Abramo

Paulo Vinicius Baptista da Silva – professor da Universidade Federal do Paraná, pesquisador sobre Ações Afirmativas da ABPN; ANPED e CNPQ, integrante do NAPP de Igualdade Racial da Fundação Perseu Abramo

Matéria publicada originalmente no site da Fundação Perseu Abramo.