Alta da taxa Selic acima de um ponto percentual não ocorria desde 2002. Juros altos podem deprimir de vez a economia e conduzir o país a um cenário de estagflação
Em uma estranha volta ao passado, o Brasil volta a conviver com a ameaça da inflação descontrolada e a decorrente escalada da taxa de juros básica, assumindo o risco de efeitos colaterais nefastos para a economia. Nesta quarta-feira (27), o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) elevou a taxa Selic em 1,5 ponto percentual (pp), para 7,75% ao ano. O patamar anual é o maior desde outubro de 2017. Também é o maior aperto monetário em quase 20 anos.
A última vez em que o Copom aumentou a Selic em mais de 1 ponto foi em dezembro de 2002, quando elevou a taxa para 25% ao ano após reajustes consecutivos. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) fechara 2002 em 12,53%. Em oito anos, a inflação do plano real havia acumulado alta de 137,93%. Nos primeiros meses de 2003, a Selic ainda subiu a 26,5%, e só passou a cair a partir de junho daquele ano.
Este é o sexto aumento consecutivo da Selic em 2021. De março a junho, o Copom elevou a taxa em 0,75 ponto percentual em cada encontro. No início de agosto, o órgão passou a aumentar a Selic em 1 ponto a cada reunião. Com a disparada da inflação e o agravamento das tensões do desgoverno Bolsonaro com o mercado financeiro, o reajuste passou para 1,25 ponto em setembro e, agora, para 1,5.
“O Comitê entende que essa decisão reflete seu cenário básico e um balanço de riscos de variância maior do que a usual para a inflação prospectiva e é compatível com a convergência da inflação para as metas no horizonte relevante, que inclui os anos-calendário de 2022 e 2023”, afirmou a autoridade monetária em nota após a reunião.
Em agosto de 2021, o IPCA ficou em 1,16%, maior taxa para o mês desde o início do plano real, em 1994. Em 12 meses, a inflação atingiu o patamar de dois dígitos: 10,25%, a mais alta desde fevereiro de 2016, quando Eduardo Cunha abria na Câmara dos Deputados o processo de impeachment de Dilma Rousseff.
No Boletim Focus divulgado pelo BC, o mercado financeiro estima que a inflação medida pelo IPCA somará 8,96% neste ano, mais do que o dobro da meta central (7,5%) e acima do teto de 5,25%. Para 2022, a previsão de inflação do mercado está em 4,40%. A projeção oficial só será atualizada no próximo Relatório de Inflação, em dezembro.
No comunicado, o Copom informou que deverá definir nova alta de 1,5 ponto na reunião de dezembro. Caso a previsão se confirme, a taxa Selic fechará 2021 em 9,25%. O atual ciclo de altas se encerraria no segundo semestre de 2022, com a taxa básica entre 11% e 12% ao ano. Mas até lá prosseguirão as pressões do rentismo por uma alta ainda maior – como nos dias que precederam a reunião desta semana.
Em sua coluna no Estado de São Paulo desta quarta-feira, o repórter Fábio Alves chegou a afirmar que, se o Copom fosse tímido na alta da Selic, não seria uma surpresa se o dólar chegasse a R$ 6. O tom de quase ameaça se deveu às falas do ministro-banqueiro Paulo Guedes sobre “furar” o teto de gastos.
“Mesmo que o Copom sancione essa visão do mercado de ruptura do regime fiscal e acelere o aperto monetário para o ritmo de 1,5 ponto, levando a Selic para 7,75% e ainda sinalizando que seguirá elevando os juros nessa magnitude, será isso suficiente para o Banco Central manter as expectativas de inflação ancoradas e evitar valorização adicional do dólar? A resposta é, provavelmente, não!”, decretou o jornalista.
Selic alta, economia em baixa
A Selic é o alegado principal instrumento do BC para manter a inflação sob controle. Usada nas negociações de títulos públicos no Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), a taxa básica serve ainda de referência para as demais taxas de juros da economia.
Pela lógica financeira, juros maiores encarecem o crédito e desestimulam a produção e o consumo, reduzindo os preços. Ao mesmo tempo, desestimulam investimentos produtivos das empresas e a contratações de novos empregados, com impacto negativo sobre o Produto Interno Bruto (PIB), o emprego e a renda.
“O aumento da taxa de juros vai tendo um efeito gradual sobre a atividade econômica, principalmente no mercado de crédito”, constatou no G1 Cristiano Oliveira, economista-chefe do banco Fibra.
Em setembro, a taxa média dos juros bancários foi a maior desde abril de 2020, e a tendência é de que novos aumentos sejam repassados aos clientes. Além do juro básico, o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) anunciado pelo desgoverno Bolsonaro também impacta o custo final dos empréstimos.
Há semanas os analistas do mercado vêm baixando a previsão de crescimento da atividade econômica em 2022Fa´biio. Já projetam inclusive um cenário de estagflação – estagnação, ou até recessão, da economia em um quadro de inflação e desemprego altos e baixa renda.
“A desaceleração (acentuada) da atividade econômica esperada para o decorrer de 2022 impedirá um recuo mais expressivo da taxa de desemprego”, avaliou em nota a equipe de analistas da XP. Eles projetam que a taxa de desemprego encerrará 2021 a 12,6%, recuando para 12,2% no final de 2022. Atualmente, está em 13,2%. Mas quem, no mercado financeiro, se importa, se seus títulos continuam bem remunerados?
Juros altos: o sonho do rentismo
Com a contração do crédito, o dinheiro que sai da economia real vai para a ciranda financeira, aumentando a remuneração dos títulos financeiros. Gabriel Leal de Barros, da RPS Capital, calcula que o ciclo de alta da Selic de 2% ao ano, em março de 2021, para 7,5% ao ano agora em outubro – e vai aumentar em dezembro – vai gerar uma despesa adicional de quase R$ 180 bilhões com juros da dívida pública.
“Novamente, quem são os vilões do aumento dos juros, além de passagens aéreas, combustíveis, energia e alimentos?”, questiona Bruno Moretti, assessor parlamentar do Senado Federal. “O governo ajuda a produzir inflação e o BC sobe os juros, transferindo renda aos rentistas e piorando o emprego. Com a queda da renda, se furar o teto pra mitigar o problema social, o mercado manda subir juros, num ciclo vicioso infernal em que o Estado se torna cada vez mais pró-mercado”, conclui o economista.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor Leonardo Leite, da Universidade Federal Fluminense (UFF), defendeu a tese de que em países periféricos na economia mundial, como o Brasil de Jair Bolsonaro, é o imperialismo que causa inflação.
“O Brasil não é um país que produz as tendências da economia mundial. Ele se insere nela de forma subordinada e recebe, absorve essas tendências”, explica. “No nosso caso, a inflação está especialmente associada ao preço do dólar. Esse é o ponto-chave. Quando ele aumenta, isso gera uma série de efeitos que produzem aumento de preços.”
“O aumento do preço do dólar encarece, por um lado, os produtos que a gente importa. E, ao mesmo tempo, por exemplo, temos hoje no Brasil um problema com o preço da carne”, continua Leite. “Por que ele, sobe, com a desvalorização cambial, se a gente não importa carne? Porque os grandes frigoríficos diminuíram o abastecimento do mercado interno para mandar mercadorias ao exterior.”
O professor da UFF lembra que o histórico de inflação no Brasil não é recente e é, inclusive, um problema recorrente. “O FMI, no Panorama Econômico Mundial, divulgado recentemente, mostra que a aceleração da inflação está associada a episódios de desvalorização da moeda”, apontou, lembrando que os países da América Latina compartilham uma tendência de “transferir valores para o resto do mundo”.
“As empresas que atuam no Brasil transferem valores ao exterior por vários caminhos. Por exemplo, parte das empresas transnacionais que atuam no Brasil remetem lucros ao exterior”, pondera Leite. “E há vários outros canais: pagamento de juros da dívida externa, pagamento de royalties… Pelo comércio internacional, também ocorre uma série de processos de transferência de valor para o exterior.”
Além disso, a desindustrialização, a dependência cada vez maior do agronegócio e a financeirização da economia oprimem os investimentos produtivos. “O empresário opta, muitas vezes, por aplicar seu dinheiro na Bolsa de Valores, em títulos públicos, bitcoins, em vez de fazer um investimento que aumentaria a oferta de produtos e teria um impacto sobre a inflação”, exemplifica Leite.
Como no capitalismo um perde para o outro poder ganhar, o resultado dessa equação é constatado no dia a dia: enquanto a base da pirâmide social disputa restos em caminhões de lixo, o topo pressiona por juros mais altos, fazendo o dinheiro “trabalhar” por eles e aumentando o abismo social em que a população afunda.
Da Redação
Matéria publicada originalmente no site Partido dos Trabalhadores e replicada neste canal.