Deputado sobre militares: “Os mais lúcidos lá estão decepcionados”

Há ainda a crise econômica grave e a inércia do governo na área, que tensiona a situação geral. Abaixo, a entrevista concedida por Zarattini:

13 jun 2019, 14:49 Tempo de leitura: 15 minutos, 5 segundos
Deputado sobre militares: “Os mais lúcidos lá estão decepcionados”
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

O projeto os une, mas a caserna não aceitaria alguns extremismos pretendidos pelos ultraconservadores, analisa Carlos Zarattini

Os militares estão à frente do projeto de interesse internacional de inserir o Brasil na economia mundial de forma ainda mais subordinada, que foi “atrapalhado” pelos governos petistas e inclui as reformas trabalhista e da Previdência, mas segundo o deputado federal Carlos Zarattini, do PT, isso não significa que eles concordariam com extremos pretendidos pelo bolsonarismo como promover um expurgo nas universidades ou implantar uma política ultraconservadora do ponto de vista dos costumes aumentando, por exemplo, a participação de evangélicos radicais na condução do País. Há ainda a crise econômica grave e a inércia do governo na área, que tensiona a situação geral. Abaixo, a entrevista concedida por Zarattini:

CartaCapital: Os militares estão divididos quanto a qual rumo dar ao País, em especial naquilo que diz respeito a soberania nacional?

Carlos Zarattini: Acho que hoje há um grupo muito grande de militares que ingressou no governo a partir dessa política de direita que não tem nenhuma preocupação com a questão da soberania nacional, mas também não concorda com toda a postura do governo, com essa confusão, uma disputa muito acirrada entre os vários grupos que estão lá dentro. Obviamente, há insatisfações deles com o governo por causa disso tudo. E há um outro lado, o dos militares que estão fora do governo, observando, e talvez acreditem que o exército não deve se envolver tanto com o governo, mas manter-se numa atitude mais profissional, mais distante, por conta de não prejudicar a própria imagem das Forças Armadas que perante a população é uma imagem positiva. Não que este grupo pense diferentemente do primeiro, mas não quer se envolver tanto, digamos.

CC: É possível aquilatar o peso relativo de cada grupo?

CZ: Não, não há como ter ideia. E há algo que fica latente, que é a baixa oficialidade que está reivindicando mais salários. Há um pouco de aspiração dessa baixa oficialidade de melhorar as suas condições salariais.

CC: Como classifica essa centena de militares presentes no governo? Quais são os mais respeitados pela tropa? Como se dividem em relação ao nacionalismo e a necessidade de soberania?

CZ: Eu acho que eles não têm nenhuma perspectiva de soberania como a gente entende tradicionalmente. Soberania para eles é simplesmente a preservação do espaço geográfico do País, não enxergam mais a necessidade de defesa das riquezas estratégicas. Isso não está mais na preocupação deles. Aderiram à política de privatizações, de submissão à política geral dos Estados Unidos. Não houve resistência à venda da Embraer, não houve resistência à questão de Alcântara, então é uma turma que não está mais muito preocupada com isso. O importante para eles é ter algum equipamento, mais ou menos moderno, e condições salariais e de aposentadoria, não querem perder tempo com a soberania do Brasil.  Do ponto de vista de governo, eles querem um governo que seja forte, que afaste a possibilidade do PT ou da esquerda voltar ao poder. Mas enxergam que as forças armadas são impolutas, superiores e se colocam a serviço do projeto maior, vamos dizer, de melhora do País do ponto de vista deles.

CC: Há quem diga que o governo Bolsonaro é prejudicial à imagem dos militares e que estes só estariam esperando passar as pretendidas alterações da previdência das forças armadas para ver um jeito de o vice-presidente Hamilton Mourão assumir. Faz sentido?

CZ: Acho que talvez faça sentido na cabeça de um ou de outro, mas não é um movimento, nem mesmo o pensamento de um grupo, me parece. Os mais lúcidos lá estão decepcionados porque achavam que o governo seria um pouquinho melhor do que está sendo, não conseguem enxergar como ele vai conseguir tocar o barco. Então é uma coisa muito precária e isso para eles é muito ruim. Não sabem o que fazer inclusive porque os militares que estão no governo não necessariamente gostam do Mourão. O vice-presidente tem outras contradições também com eles. Está um mangue, a situação e ninguém sabe para onde esta coisa vai nem exatamente  que fazer.

CC: Qual das armas concentra a maior quantidade de nacionalistas?

CZ: Eu acredito que hoje essa questão está em plano secundário e não é colocada mais. Eles ainda de certa forma preservam a ideia de que estão trabalhando com aquela ideia da estratégia nacional de defesa que foi elaborada na época do Lula e que era profundamente nacionalista, mas na prática isso está sendo abandonado pois na medida que se vai submetendo ao que interessa aos EUA, desmonta-se todos os programas da área. O fato de a Embraer ter sido vendida para a Boeing praticamente acabou com a maior empresa de defesa do Brasil, que era estratégica. Eles deixaram passar essa bola.

CC: E não houve reação alguma deles a isso.

CZ: Eles tentaram preservar alguns setores da Embraer na negociação mas nunca se contrapuseram frontalmente. Houve preservação do setor militar, mas eu acho que uma empresa dividida no meio como ela foi acaba desconectando um lado do outro. A área militar não vai ter recursos para fazer a mesma engenharia que a área civil.  Haverá muitos problemas. Há projetos em andamento mas de onde vão sair os próximos? Não tem como.

CC: Qual o clima na Marinha após o ministro Bento defender a quebra do monopólio do urânio?

CZ: Minha opinião é a seguinte: nós tivemos durante todo esse período do monopólio da exploração uma dificuldade muito grande na extração do urânio. A exploração da mina de Caitité realmente apresentou muitas dificuldades. Mas em vez de ter uma política de reorganizar a exploração, o que o governo faz? Propõe a entrega dessa exploração. É um equívoco. Se está mal feito, vamos corrigir. Não é possível achar que está mal feito porque não tem o capital estrangeiro ou não tem o capital privado.

CC: Como o senhor explica a convergência que parece unânime dos militares para a aprovação da venda das refinarias e empresas de transporte de gás e petróleo da Petrobras que prejudicam o papel estratégico dos hidrocarbonetos na matriz energética do País que serão fundamentais pelos próximos 40 anos no mínimo?

CZ: Eles não tem uma visão de quais são  as empresas mais estratégicas do Brasil. A Petrobras por exemplo, não é uma empresa de petróleo só, é uma companhia que fornece a principal fonte de energia do País. Ma medida que se perde as refinarias, e eles estão deixando elas operarem só com metade da capacidade, obrigam o Brasil a importar derivados idiotamente. Há na Petrobras um almirante, Eduardo Bacellar Leal Ferreira, que deveria estar levantando essas questões e ver que se for feita a venda, ele será responsável na medida que ele é o presidente do conselho. Mas não se vê nenhuma visão estratégica em relação a isso. Os Chicago Boys dominam a Petrobras e fazem o que bem entendem. Estão esquartejando a empresa e principalmente um setor fundamental como são as refinarias.

CC: Qual é o limite para os militares continuarem apoiando Bolsonaro?

CZ: O problema é o seguinte: há a ala olavista e os filhos de Bolsonaro querendo uma radicalização do governo, trabalham com a ideia de um governo mais à extrema direita ainda que faça uma faxina radical no País. Os militares não querem entretanto entrar nesse tipo de coisa não porque não sejam anticomunistas ou antiesquerdistas, mas porque têm uma visão de que é preciso preservar alguns procedimentos do País. Não estou dizendo também que eles são totalmente democratas, mas que não querem entrar nessa loucura, que é muito fora da sociedade. Então eles enxergam que é preciso ter um processo razoavelmente normal. Acham que certas coisas têm de ser feitas, mas dentro de uma certa normalidade. E há a disputa por espaço. Por que os filhos do Bolsonaro tentaram derrubar o ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Alberto dos Santos Cruz? Porque queriam ocupar o comando da publicidade governamental. Existe portanto uma disputa de espaço violenta. Penso que se essa disputa se agudizar em algum momento, isso pode levar a que eles ou saiam ou acabem sendo deslocados no governo. Vai depender da evolução da crise política e da crise econômica, a definição da posição deles. Outro ponto é que eu não acredito que seja uma posição de grupo, que exista um grupo que vá sair e outro que vá ficar. São indivíduos que pensam de modo mais ou menos igual, mas não acredito que exista uma coordenação.

CC: O senhor disse que os militares teriam interesse em preservar alguns procedimentos. Quais seriam eles?

CZ: Imagino que eles não concordariam por exemplo, como quer a turma do Olavo de Carvalho, com um expurgo nas universidades, ou a implantação de uma política com um viés ultraconservador do ponto de vista dos costumes, aumentando a participação dos setores evangélicos radicais, por exemplo. E há o problema da crise, que é concreta, com a população vivendo numa situação cada vez pior, desemprego elevado e o governo não sendo capaz de dar solução. Isso tensiona a situação geral.

CC: No caso específico da crise econômica, que procedimentos eles procurariam preservar?

CZ: A crise prejudica o andamento do governo como um todo. Além da piora das condições de vida da população há ainda a crise financeira do governo, que não tem dinheiro para nada. O repasse do SUS para as cidades está travando. Isso leva à briga interna, disputas, para ver quem é que fica com algum quinhão. Veja, cortaram 40% do orçamento de investimentos das forças armadas. Cria uma insatisfação enorme. São coisas como essas que vão gerando descontentamento, divergências e que acabam levando a conflitos.

CC: Até porque isso que estão dizendo, que é “previdência ou morte”, sobre o projeto de reforma do governo, é balela porque a economia, se houver, ocorrerá daqui há anos e enquanto isso eles não investem e não há receita para estados municípios e governo federal. É um pretexto.

CZ: Exato. Veja o caso da Fiat agora. Resolveu construir uma fábrica nova em Betim. Decidiu sem sequer ter sido aprovada a reforma da Previdência. Por que ela decidiu isso? Porque ela vê um mercado na frente, vê que pode vender. Então o que leva os investimentos a acontecerem não é a reforma, é a perspectiva do mercado, de ter comprador para os produtos. Se não houver ninguém investe.

CC: Como se explica a reversão do nacionalismo desde a criação da Petrobras na qual os militares tiveram papel fundamental para a situação de entreguismo quase absoluto atual?

CZ: Eu acho que houve um trabalho ideológico durante esses anos todos feito pelos principais meios de comunicação, de mostrar as vantagens da privatização, do neoliberalismo, do estado mínimo. Essa doutrinação atingiu toda a classe média e os militares são fundamentalmente de classe média, não são diferentes daquele estrato social ao qual eles pertencem. Estudam em escolas, mantém relações, contato com setores da classe média que tem uma visão que não leva mais em conta a questão nacional, a questão da soberania, da necessidade de desenvolvimento autônomo, do desenvolvimento do mercado interno. Isso, pra essa classe média que ouve a Globo News, é tudo bobagem. Então eu acho que eles foram doutrinados aí por essa visão neoliberal propagada pelos meios de comunicação.

CC: Os EUA participaram de exercício militar na Amazônia e nisso há algo da maior relevância ligado à soberania que se quebra. A mudança de posição provocou discórdia entre os militares conforme se divulgou?

CZ: Não só isso. É lógico, quando vem outro exército e vai fazer o serviço que é dos militares brasileiros, há um certo ressentimento, mas de toda forma acabaram se entendendo. Nomear um almirante brasileiro vice-comandante da frota americana do comando militar Sul foi, entretanto, bem mais grave e significativo, um verdadeiro absurdo. O que acontece é que nós estamos cada vez mais nos submetendo ao comando americano, não ao comando dos nossos interesses, do nosso desenvolvimento, da nossa soberania territorial e energética, das nossas riquezas.

CC: Como mudou a posição dos militares em relação a questão da necessidade do domínio da tecnologia pelo Brasil? A Marinha teve todo um desenvolvimento próprio, com empresas brasileiras, na construção de submarinos e só a França aceitou transferir tecnologia. No caso dos caças, só os suecos concordaram em transferir a tecnologia, no caso a dos caças Gripen. Os acordos de transferência de tecnologia foram aplaudidos pela Marinha e pela Força Aérea e agora inverte-se tudo?

CZ: Eu não vou dizer que inverteu-se tudo, mas quando nós estávamos no governo era uma prioridade ter autonomia na indústria militar nacional, instalada no Brasil e na mão dos brasileiros. Mudamos inclusive a legislação que FHC havia revogado, a respeito de indústria nacional de capital nacional, e voltamos a colocar isso na lei. Houve um engajamento pelo menos da cúpula, naquele projeto, que inclusive era sedutor do ponto de vista de uma indústria e uma tecnologia próprias. Na medida em que houve todo o ataque dos último anos aos governos do PT e às próprias empresas que estavam envolvidas nesse projeto, isso levou a uma redução daquele entusiasmo e à sedução por outro projeto, o da faxina política do País na qual eles acabaram se engajando e abrindo mão da ideia anterior. Já não há nenhuma proteção à indústria nacional. Veja o exemplo da indústria naval, aquilo que conseguimos colocar em pé a partir das encomendas da Petrobras foi destruído. Existe um projeto de interesse internacional de inserir o Brasil na economia mundial de forma subordinada e que o PT e os nossos governos atrapalharam. A gente estava impedindo que isso acontecesse. Na medida em que se tirou o PT do governo, passou-se a avançar a passos rápidos nessa política, que inclui não só uma inserção subordinada no capitalismo internacional, mas ainda o rebaixamento do custo de mão de obra através da reforma trabalhista e também a questão da apropriação dos fundos públicos, como é o caso da Previdência onde o objetivo central é se apropriar dos 800 bilhões de reais que são gastos por ano na previdência social. Uma coisa de grande porte.

CC: Como foi a reação ao recente corte de 40% no orçamento das forças armadas?

CZ: Há uma insatisfação mas ninguém assina manifesto, reclama-se porque evidentemente o corte paralisa os projetos, mas não é algo que esteja mobilizando céus e terras. O que há é uma mobilização do setor militar em defesa da aposentadoria, isso sim.

CC: É uma conclusão ou são informações?

CZ: São informações.

CC: O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, que nos últimos aumentou aumentou a sua exposição na mídia é representativo de um grupo?

CZ: O general Heleno se notabilizou inicialmente como comandante militar da Amazônia e nessa função tinha uma posição de defesa do território,  uma visão nacionalista muito forte a respeito do território da Amazônia, tanto que ele foi escolhido para comandar a tropa brasileira no Haiti, exatamente por aquele destaque. Inicialmente no nosso governo, ele teve esse comportamento mais voltado ao nacionalismo.  Isso virou para uma visão antiCC: governo depois do caso da reserva Raposa Serra do Sol onde entendeu que era um ataque aos interesses nacionais pois implicava a criação de territórios autônomos dentro do País, os territórios indígenas. Isso acabou provocando um certo rompimento e um afastamento do governo. A decisão da Raposa Serra do Sol foi do STF, mas contou com o apoio do governo. Ali ele se afasta do governo e passa a caminhar para a oposição. Com a Lava Jato, entrou numa linha de ataques e de buscar realmente terminar o governo de Dilma. Entrou nesse embalo já fora do Exército e teve influência importante sobre governistas e no Clube Militar e isso acabou influenciando também os militares da ativa.  Não vou dizer que foi alguém que teve liderança. Quem teve um papel de liderança realmente antes e depois do governo Dilma foi o ex-comandante do exército brasileiro, general Villas Bôas. Acho que é outro tipo de liderança.

CC: Diferente em que aspectos?

CZ: Villas Bôas é muito mais político, tem uma experiência política maior, visão política mais ampla que o general Heleno, que ganhou uma outra característica.

Matéria publicada originalmente no site Carta Capital e replicada neste canal.