Elas nascem, crescem e buscam sobreviver em uma sociedade racista e patriarcal.
Da Redação, Agência Todas
As mulheres negras são as que mais sofrem violência doméstica e também são as que mais denunciam. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 1.206 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2018 e 61% delas era negra (soma de pretas e pardas, de acordo com classificação do IBGE). Em relação à denúncia, dados do Ligue 180, serviço do governo que recebe denúncias de violência contra a mulher, localizam as mulheres negras no campo da violência doméstica. Em 2016, 60% das mulheres que relataram casos violência eram negras – os dados de 2017 e 2018 tiveram um alto percentual de mulheres que não informaram raça.
O recorte de gênero e raça é fundamental para compreender os impactos da sociedade racista no cotidiano da mulher negra e de toda sua família.
“A compreensão da luta feminista precisa passar por uma perspectiva profunda da realidade das mulheres negras que se diferem das mulheres brancas. Sem a abordagem interseccional, podemos cair em um universalismo inexistente e que só beneficia quem é branco e rico”, afirma Anne Moura, secretária nacional de mulheres do PT.
De fato, segundo a ONU – Mulheres e OPAS/ OMS (Organização Pan-Americana da Saúde – Organização Mundial da Saúde), a taxa de homicídio entre as mulheres brancas caiu de 3,6 por 100 mil em 2003 para 3,2 em 2013, uma redução de 11,9%. Já entre as mulheres negras, houve um aumento de 4,5 para 5,4 por 100 mil no mesmo período, um crescimento de 19,5%. Em 2013, foram assassinadas 66,7% mais negras do que brancas.
Além da violência física e doméstica, as mulheres negras também convivem em uma sociedade que nega acesso a serviços públicos de qualidade, nega direitos civis e humanos básicos, causando uma forma de violência permanente e silenciosa que vai ceifando o futuro e minando a perspectiva de melhoria de vida.
Segundo o IBGE, apesar de uma melhora nos índices entre 2000 e 2010 em relação à população afro-brasileira, o analfabetismo entre as negras ainda é o dobro se comparado com às brancas. Em relação à taxa de desemprego, em 2015 foi registrado que 17,4% das mulheres negras com ensino médio estava sem emprego, contra 11,6% da média feminina.
Diante do cenário de pandemia, a situação se agrava e a população de mulheres negras é a que mais sente os efeitos e as consequências econômicas e sociais. Elas ocupam as duas pontas da maior área de risco de vulnerabilidade social e segurança sanitária — tanto por serem maioria em profissões precarizadas e/ou de baixa remuneração como auxiliares de limpeza em diversas áreas incluindo hospitais, expondo-se constantemente ao risco; quanto por serem as primeiras a perderem seus empregos, por conta de relações precarizadas de emprego, ou as que se encontram impossibilitadas de ficarem em quarentena, para garantirem o sustento da família — em que, muitas vezes, são as únicas ou as principais responsáveis.
O “Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil” da ONU Mulheres constatou o aumento na proporção de mulheres como chefes de família é maior nas famílias chefiadas por mulheres negras. Enquanto a maioria das famílias chefiada por mulheres era por mulheres brancas em 1995 (54,4%), em 2009, a maioria torna-se chefiada por mulheres negras (51,1%). Em termos absolutos, a dianteira das mulheres negras como chefes de família se dá a partir de 2007.
No entanto, é importante não perder de vista a brutal desigualdade das famílias chefiadas por mulheres brancas e negras. Atualmente, as mulheres negras recebem 51% a menos do que as brancas; uma disparidade quem também se verifica no meio masculino: homens negros recebem apenas 52% do rendimento dos homens brancos. Na série histórica, as famílias chefiadas por mulheres negras mantiveram-se sempre na posição de piores rendimentos, seguida pelos homens negros, mulheres brancas e, por último, pelos homens brancos.
Do nascimento.
A violência obstétrica atinge uma em cada quatro mulheres no nosso país, de acordo com o Ministério da Saúde. E dessas, alvos da violência obstétrica, 65,9% são negras. E apenas 27% das negras gestantes obtiveram acompanhamento durante a gestação. Um dado ainda mais alarmante dessa apuração: 62,8% das mortes maternas são das negras.
A pesquisadora e doutora em saúde pública, Maria do Carmo Leal, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), realizou uma pesquisa sobre a qualidade do atendimento às mulheres negras durante o parto.
“Mulheres pretas têm quadris mais largos e, por isso, são parideiras por excelência”, “negras são fortes e mais resistentes à dor”. Percepções falsas como essas, sem base científica, foram ouvidas em salas de maternidades brasileiras e chamaram atenção da pesquisadora.
Essa pesquisa foi baseada em um estudo maior, realizado em conjunto com outros autores, que analisou o recorte de raça e cor dos dados de uma ampla pesquisa nacional sobre partos e nascimentos, a “Nascer no Brasil”, com base em prontuários médicos de 23.894 mulheres coletados entre 2011 e 2012.
O artigo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil” examinou a aplicação da anestesia local para a realização da episiotomia — corte feito na região do períneo para ampliar a passagem do bebê em partos vaginais.
Os resultados mostraram que, apesar de sofrerem menos episiotomias em comparação às brancas, mulheres negras tinham chances menores de receber anestesia durante o procedimento. “O que a gente encontrou foi que, durante a episiotomia, que por sinal não é mais uma prática que se recomende que seja feita, a chance de a mulher negra não receber anestesia é 50% maior. Isso [o corte] é algo que realmente dói bastante”, pontua a pesquisadora.
Desse grupo de mulheres que receberam o corte no períneo, em 10,7% das mulheres pretas não foi aplicada a anestesia local para a realização do procedimento, enquanto no grupo das mulheres brancas a taxa de não recebimento de anestesia foi de 8%.
Segundo o Dossiê das Mulheres Negras da ONU, a incidência e a intensidade dessas diversas situações que afligem as negras estão diretamente ligadas ao status da mulher em cada sociedade. Muitos estudos têm discutido que a violência, em todas as suas acepções, é marcante nas relações desiguais de gênero entre homens e mulheres, relacionando-se intimamente com as opressões de raça, classe social, orientação sexual e outras formas de discriminação e preconceito.
Matéria publicada originalmente no site Partido dos Trabalhadores e replicada neste canal.